Vieram umas pessoas perguntar-me se queria ir trabalhar para Espanha. Fui só que as coisas complicaram-se e nunca me pagaram nada. Em 9 anos nunca recebi dinheiro

— Mário, vítima de tráfico humano —

Por ano em Portugal

29
Menores sinalizados como presumíveis

vítimas de Tráfico de Seres Humanos

219
Pessoas sinalizadas como presumíveis

vítimas de Tráfico de Seres Humanos

13
Pessoas confirmadas como
vítimas de Tráfico de Seres Humanos

*Observatório do Tráfico de Seres Humanos – Relatório Anual sobre Tráfico de Seres Humanos 2019

Não tinha para onde ir. Não tinha como fugir. Pensava várias vezes em matar-me.

— Maria, vítima de tráfico humano —

O que é o Tráfico de seres Humanos?

Definição Legal
O tráfico de seres humanos é um crime, definido na União Europeia pela Diretiva 2011/36/UE, de 5 de abril de 2011, enquanto:

“O recrutamento, transporte, transferência, guarida ou acolhimento de pessoas, incluindo a troca ou a transferência do controlo sobre elas exercido, através do recurso a ameaças ou à força ou a outras formas de coação, rapto, fraude, ardil, abuso de autoridade ou de uma posição de vulnerabilidade, ou da oferta ou obtenção de pagamentos ou benefícios a fim de conseguir o consentimento de uma pessoa que tenha controlo sobre outra para efeitos de exploração”

Na legislação portuguesa, o tráfico de seres humanos é definido pelo artigo n.º 160 do Código Penal, nos seguintes termos:

“Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas:

a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;

b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;

c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;

d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima;

e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima; é punido com pena de prisão de três a dez anos”.Face à complexidade da definição deste crime e de forma a facilitar a sua compreensão, devemos pensá-lo como uma tríade que invariavelmente terá de ser composta por uma ação que, através de um meio, pretende atingir objetivo final de explorar a vítima. O quadro abaixo ilustra a forma como estas três componentes são conjugadas de acordo com a definição do crime de tráfico de seres humanos:

Quadro - Ações, Meios e Finalidade

Para que seja considerado como tal, o crime de tráfico de seres humanos, exige a combinação de um ou mais fatores de cada coluna, conforme os exemplos fornecidos pelas setas em destaque.

De acordo com a sua definição legal, podemos dizer que o tráfico de seres humanos ocorre de acordo com o seguinte ciclo:Recrutamento, Transporte, Exploração

Recrutamento

O recrutamento ou angariação das vítimas de tráfico ocorre de diferentes formas, variando de acordo com o tipo de vítima visada (adulto ou criança, homem ou mulher) e o tipo de exploração que se pretende realizar. Assim, é possível que o recrutamento seja feito através de falsos anúncios de trabalho, promessa de oportunidades de estudo ou formação, promessas de relacionamento amoroso, propostas de apoio e facilitação da emigração/imigração para outro país ou o próprio rapto da vítima. O que está na base destas promessas é o engano: com o intuito de atrair a pessoa e conduzi-la até à situação de exploração, é-lhe prometida uma condição futura (trabalho, estudo ou outros) que nunca chega a concretizar-se.

O recrutamento pode ser feito por pessoas sem qualquer relação com a vítima, por conhecidos e mesmo por familiares, que podem atuar sozinhos ou no quadro de uma organização criminosa. O contacto com a vítima pode ser estabelecido pessoalmente (especialmente no caso de conhecidos e familiares) ou através de um meio de comunicação de massa, como os jornais e a internet, sendo este último um instrumento cada vez mais utilizado.Transporte

O transporte das vítimas é a segunda fase do processo do tráfico de seres humanos. Este transporte pode ter como destino um local no próprio país onde a vítima foi recrutada ou um país diferente, implicando a transposição de fronteiras. O transporte não decorre necessariamente de forma direta do local de origem para o de destino – é comum que os autores do crime utilizem rotas que implicam a passagem por diferentes países ou regiões (os chamados locais de trânsito). A vítima pode ser transportada pelos próprios recrutadores ou futuros exploradores, ou ainda deslocar-se sozinha, seguindo as orientações dos autores do crime.

As formas de transporte são variadas, podendo ser utilizados meios de transporte público comuns (e.g. autocarro, comboio, avião), particulares (e.g. carros) ou outros transportes destinados a deslocar várias vítimas de uma só vez (e.g. carrinhas, camiões, barcos). As condições do transporte são muitas vezes precárias: sem oxigénio suficiente, com excesso de passageiros, em lugares inapropriados (juntamente com a carga de camiões) e de outras formas que colocam em risco a integridade física e a vida das pessoas transportadas.

Exploração

A fase de exploração conclui o ciclo do tráfico. Conforme mencionado anteriormente, as formas de exploração no tráfico de seres humanos são variadas, tendo como característica comum o facto de a vítima ser obrigada a realizar uma atividade por meio de ameaças ou outras formas de coação, tendo a sua liberdade de movimentos condicionada.

O objetivo principal de todas as formas de exploração é o aproveitamento económico, seja porque a vítima desempenha um trabalho sem remuneração, gerando lucro aos exploradores (no caso da exploração laboral), seja porque é a própria vítima quem obtém dinheiro e/ou bens materiais que é obrigada a entregar aos exploradores (no caso da exploração sexual e da mendicidade).

Mitos e Factos
O tráfico de seres humanos é um fenómeno complexo, cujo conceito dinâmico tem sido constantemente adaptado para acompanhar as mudanças sociais, económicas e culturais com ele relacionadas. Além disto, a forma como o tráfico de seres humanos é praticado e criminalizado em cada país apresenta diferenças substanciais, o que também influencia a compreensão deste fenómeno.

Por todos estes motivos, é comum a propagação de mitos ou erros conceituais a respeito do tráfico de seres humanos que geram confusão e dificuldades na compreensão exata deste crime e também na identificação de possíveis situações de tráfico. A desmistificação e o esclarecimento de eventuais equívocos quanto ao conceito de tráfico de seres humanos é essencial para promover o conhecimento desta realidade e a sua prevenção.

1) Só as mulheres são vítimas de tráfico de seres humanos.

MITO. Um dos principais mitos ligados ao tráfico de seres humanos consiste na crença de que este fenómeno só atinge mulheres, que são forçadas a práticas sexuais. Na verdade, as vítimas podem ser tanto do género feminino como do género masculino e de várias idades – as crianças representam uma grande percentagem das vítimas de tráfico. Homens, mulheres e crianças de ambos os géneros são sujeitos a diferentes formas de exploração, sendo que em muitos casos a mesma vítima é sujeita a mais do que um tipo de exploração simultaneamente.

2) O tráfico de seres humanos acontece unicamente com os imigrantes de países pobres e com baixos níveis de educação.

MITO. As estatísticas obtidas a nível global têm demonstrado que, cada vez mais, são identificadas vítimas de tráfico naturais de países considerados desenvolvidos e com educação superior. Isto relaciona-se com a crescente mobilidade internacional de mão-de-obra (qualificada e não qualificada) entre os países, bem como com uma maior facilidade e intensidade dos movimentos migratórios, nomeadamente o caso de jovens à procura de melhores condições de vida e de trabalho.

3) Os traficantes podem operar através de agências de viagens e emprego, prometendo trabalho no estrangeiro e documentação.

FACTO. Atualmente é comum que os recrutadores utilizem ferramentas como falsos anúncios de emprego e de agências de viagem ou de trabalho para atrair pessoas que poderão ser enganadas por falsas propostas, tornando-se vítimas de exploração.

4) O recrutamento envolve sempre força física ou rapto.

MITO. O conceito que define o tráfico de seres humanos é claro ao evidenciar que o recrutamento não implica necessariamente que a vítima tenha sido raptada ou levada à força e sujeita a violência. As situações em que a pessoa é enganada, acreditando numa falsa proposta ou promessa, nas quais frequentemente a vítima se desloca por iniciativa e meios próprios até ao local onde acaba por ser explorada, também podem ser enquadradas no crime de tráfico.

5) Durante a exploração, a pessoa tem a sua liberdade condicionada.

FACTO. Para que seja configurado o crime de tráfico de seres humanos, é preciso que a vítima tenha sido mantida sem uma alternativa viável para sair da situação de exploração, sendo efetivamente forçada, através de coação física ou moral, a fazer algo contra a sua vontade (por exemplo, a prostituir-se ou a exercer uma determinada atividade profissional).

6) As vítimas de Tráfico de Seres Humanos são frequentemente vistas como pessoas que violaram as leis da imigração.

FACTO. Embora seja um preconceito, é comum que as vítimas de tráfico sejam vistas pela população em geral como imigrantes que deliberadamente transpuseram as fronteiras de forma ilegal. É preciso ter em conta que o transporte das vítimas de tráfico dentro de um mesmo país ou para países diferentes é feito de forma forçada ou enganosa e que quando chegam ao local de destino estas vítimas são alvo de formas graves de exploração, sendo a sua situação manifestamente diferente dos cidadãos que optam por emigrar de livre vontade, seja de forma legal ou ilegal.

7) Todas as vítimas de Tráfico de Seres Humanos são estrangeiros que estão em situação documental irregular.

MITO. A situação de irregularidade não é essencial para a caracterização do tráfico de seres humanos: são frequentes as situações em que os autores do crime obtêm toda a documentação necessária para a entrada num determinado país de forma legal, a fim de não levantar suspeitas e de garantir que a vítima chegará ao local onde será explorada. Mediante estas estratégias, é comum que as vítimas acreditem que estão a ser auxiliadas no seu projeto migratório e só ao chegarem ao seu local de destino é que se dão conta de que foram enganadas e que serão vítimas de exploração.

8) O Tráfico de Seres Humanos é dos crimes mais lucrativos da Europa.

FACTO. Estima-se que atualmente o tráfico de seres humanos seja um dos crimes mais lucrativos, ficando atrás apenas do tráfico de drogas e de armas.

9) O tráfico de seres humanos gera lucro através da exploração das vítimas.

FACTO. As vítimas de tráfico de seres humanos podem ser sujeitas a diferentes formas de exploração, que se traduzem em lucro para os exploradores, seja através da retenção de todo ou de grande parte do dinheiro que a vítima recebe com a atividade que é obrigada a praticar (como a prostituição ou a mendicidade forçada) ou porque a vítima não recebe o pagamento devido pelo trabalho que presta (na exploração laboral, as vítimas são frequentemente obrigadas a trabalhar na agricultura ou na construção civil sem receber nenhum ordenado ou contrapartida financeira).

Situações de Vulnerabilidade para o Tráfico de Seres Humanos
Os fatores que movimentam o tráfico de seres humanos decorrem essencialmente da combinação entre a procura ou demanda por um determinado serviço ou produto e as ofertas disponíveis para suprir esta procura.

Por exemplo, se pensarmos numa localidade em que existem diversas fábricas do setor têxtil que competem entre si para fornecer o preço mais baixo e estão dispostas a empregar pessoas sem remuneração ou com remuneração muito baixa para aumentarem a margem de lucro, temos a demanda; por outro lado, se temos uma outra localidade cuja população tenha dificuldades de integração no mercado de trabalho, altas taxas de desemprego e um baixo nível de vida, temos a oferta de possíveis vítimas de tráfico.

A oferta e a demanda dependem assim de fatores de risco associados às possíveis vítimas de tráfico – no exemplo citado, os fatores de risco ou vulnerabilidade são o desemprego e o baixo nível de vida. O fator de risco mais frequentemente associado ao tráfico e que está, de facto, presente numa grande parte das situações identificadas em todo o mundo é a pobreza. No entanto, é comum que existam outros fatores que, aliados à pobreza, sejam determinantes para desencadear a situação de tráfico.

A lista seguinte, embora não exaustiva, enumera algumas situações que podem significar uma maior vulnerabilidade ao tráfico de seres humanos:

• Afastamento da família de origem (ex.: crianças que são afastadas dos pais devido de uma situação de guerra ou desastre natural);

• Vítimas de violência doméstica – tanto crianças como adultos, que não encontram meios de subsistência ao saírem da situação de violência;

• Pessoas que se sujeitam a processos de imigração ilegal;

• Situação de sem-abrigo;

• Pessoas que trabalham no mercado sexual (prostituição);

• Pessoas ou grupos sujeitos a discriminação racial ou étnica;

• Discriminação de género;

• Exclusão social;

• Crianças desacompanhadas em trânsito entre diferentes países;

• Trabalho infantil;

• Crianças cujo nascimento não foi registado em nenhum órgão oficial;

• Dependência de substâncias tóxicas e envolvimento em atividades criminosas;

• Pessoas indocumentadas num determinado país ou território;

• Desemprego;

• Falta de inspeção nos locais de trabalho e/ou dificuldade de acesso a informação sobre direitos laborais;

• Inexistência de informação e de campanhas de sensibilização sobre o tráfico de seres humanos nas comunidades locais;

• Qualquer outra circunstância que dificulte o exercício regular dos direitos por uma determinada pessoa ou grupo de pessoas.

Tráfico de Seres Humanos para Exploração Laboral

O que é?
O tráfico de seres humanos para exploração laboral acontece quando uma pessoa é recrutada e sujeita a trabalhos forçados, em condições degradantes e sem liberdade de ir e vir ou de contactar outras pessoas.

Para que se compreenda o tráfico para fins de exploração laboral, é importante saber diferenciá-lo de outros fenómenos que possam estar relacionados.

A exploração laboral consiste na violação dos direitos do trabalhador e a sujeição deste a condições precárias e degradantes, práticas que podem constituir ofensas em diferentes níveis.

No primeiro nível, temos as situações em que o empregador não respeita a legislação laboral e viola os direitos dos trabalhadores relativamente às condições de trabalho, o que poderá configurar uma contraordenação, nos termos do Código do Trabalho. Como exemplo de contraordenações temos: a não celebração de contratos escritos com trabalhadores estrangeiros, a não atribuição de licença maternidade e o não fornecimento pelo empregador dos equipamentos de segurança necessários para a execução do trabalho.

No segundo nível, temos situação mais graves do que a descrita acima, que envolvem, para além da violação dos direitos do trabalhador, outras condutas mais graves como ameaças, coação, ofensas corporais, ausência de cuidados de saúde e de higiene, dentre outros semelhantes, e que configuram crimes, como o crime de ameaças e/ou de ofensas à integridade física.

No último nível – o mais grave -temos as situações mais severas de violação dos direitos dos trabalhadores, que podem ser enquadradas no crime de tráfico de seres humanos. São situações em que o trabalhador foi recrutado para executar um trabalho e depois obrigado a realizar outro diferente, contra a sua vontade, sem receber nenhuma contrapartida financeira e ainda sujeito a ofensas físicas e/ou sexuais, proibição de contactar outras pessoas ou de se movimentar livremente, sem alimentação e cuidados de saúde adequados, podendo inclusive ser comprado e vendido como se de um objeto se tratasse.

Em todos estes níveis, o trabalhador é gravemente prejudicado pela violação dos seus direitos.

Para prevenir a ocorrência do tráfico de seres humanos, é fundamental que os trabalhadores conheçam os seus direitos, aprendendo a reconhecer possíveis situações de exploração e a procurar ajuda caso verifiquem que os seus direitos não estão a ser respeitados.

Direitos dos Trabalhadores?
Para evitar situações de exploração laboral, quer estejam ou não enquadradas no crime de tráfico de seres humanos, é importante que os trabalhadores conheçam os seus direitos.

O Código do Trabalho prevê diversas regras que os empregadores devem cumprir a fim de assegurar que os seus trabalhadores exercem a sua actividade de uma forma digna, segura e humana. De forma a garantir o cumprimento das leis laborais e assegurar a dignidade dos trabalhadores, devem ser respeitados os seguintes direitos:

– Não ser discriminado em razão do sexo, nacionalidade, origem racial ou étnica, orientação sexual, dentre outros fatores; – Ser tratado com respeito pelo empregador; – Receber uma contribuição justa e adequada ao trabalho que exerce; – Que o empregador proporcione boas condições de trabalho (físicas e morais); – Que o empregador contribua para a elevação da sua produtividade e empregabilidade, nomeadamente proporcionando-lhe formação profissional adequada a desenvolver a sua qualificação; – Ver respeitada a sua autonomia técnica; – Exercer cargos em estruturas representativas dos trabalhadores (como sindicatos); – Ter a sua segurança e saúde protegidas de riscos e doenças profissionais, bem como de ser indemnizado dos prejuízos resultantes de acidentes de trabalho; – Receber do empregador informação e formação adequadas à prevenção de riscos de acidente ou doença; – Exercer o seu trabalho sem qualquer impedimento injustificado; – Não ser transferido para uma categoria inferior ou para outro local de trabalho, salvo nos casos previstos na legislação em vigor ou quando haja acordo neste sentido; – Trabalhar sem ser coagido a adquirir bens ou serviços fornecidos pelo empregador ou por pessoa por ele indicada; – Não ser demitido e readmitido, com prejuízo dos direitos e garantias decorrentes da antiguidade; – Gozar os períodos de férias e licenças atribuídos pela legislação (como as licenças de maternidade e paternidade); – Gozar o descanso semanal e ter o seu horário de trabalho respeitado.

Caso o empregador não cumpra com estes e outros deveres previstos na legislação, relativamente aos seus trabalhadores , poderá incorrer numa contraordenação.

É importante que os trabalhadores conheçam os seus direitos de modo a serem capazes de avaliar a sua própria condição laboral e evitar possíveis situações de exploração. Se tiver dúvidas sobre os seus direitos laborais ou considerar que os seus direitos estão a ser desrespeitados, contacte a ACT (www.act.pt).

Para mais informações sobre esta questão, poderá ainda contactar a APAV (www.apav.pt).

Exploração laboral
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho forçado é definido como “todo o trabalho ou serviço que é exigido a qualquer indivíduo sob ameaça de qualquer castigo e para o qual o referido indivíduo não se tenha oferecido de livre vontade” (artigo 2º da Convenção nº 29 da OIT). Os trabalhos forçados constituem uma das formas de exploração laboral, mas esta pode englobar também outras práticas que se caracterizem pela violação dos direitos fundamentais do trabalhador, envolvendo sempre alguma forma de coação, ameaça ou ofensas físicas, emocionais e/ou sexuais efetivas. Tratam-se, portanto, de situações mais graves do que a violação dos direitos laborais do trabalhador (vistos na secção anterior).

Para facilitar a identificação de situações de exploração laboral, a OIT disponibiliza seis indicadores, que se referem a determinadas características que geralmente estão presentes nestas situações:

• Ameaça de perigo físico atual para os trabalhadores;
• Restrições de movimento e isolamento ao local de trabalho ou a uma área limitada;
• Escravidão ou servidão por dívida (“Debt bondage”): Quando um trabalhador exerce a sua atividade para pagar uma dívida ou um empréstimo. (Ex.: O empregador providencia comida e alojamento, mas o trabalhador não é pago pelo seu trabalho ou o empregador providencia comida ou alojamento, mediante cobrança de preços tão elevados, que o trabalhador nunca consegue pagar a dívida);
• Retenção do ordenado ou a sua excessiva redução, violando o acordo previamente realizado;
• Retenção de passaportes ou documentos de identificação para que o trabalhador não possa sair ou provar a sua identidade ou estatuto;
• Ameaça de denúncia às autoridades policiais quando os trabalhadores se encontram numa situação irregular no país.

A ocorrência de um ou mais destes indicadores sugere fortemente a ocorrência de exploração laboral. Se identificar estes indicadores na sua situação laboral ou na de alguém que conheça, contacte a APAV (www.apav.pt) para obter informação e apoio.
De qualquer forma, é importante salientar que a ocorrência de exploração laboral não implica necessariamente a configuração do crime de tráfico de seres humanos.

Exploração Laboral no contexto do Tráfico de Seres Humanos
Para que esteja configurado o crime de tráfico de seres humanos para exploração laboral, é preciso que estejam presentes outros elementos para além da exploração propriamente dita: a ação que precede a exploração e o meio de coação, conforme a comparação no quadro abaixo:

Assim, para que se configure a exploração laboral no âmbito do tráfico de seres humanos, é necessário que a pessoa (vítima) seja obrigada pelos autores do crime a realizar um trabalho contra a sua vontade ou em condições com as quais ela não concorda, em razão, nomeadamente, do excesso de horas de trabalho, das condições degradantes, do não pagamento de ordenados e outros benefícios, para além da privação da liberdade ou do controlo de movimentos, que são características essenciais deste tipo de crime.

No âmbito do tráfico de seres humanos, as situações de exploração laboral ocorrem mais frequentemente em alguns setores de actividade:

•Trabalho doméstico: neste tipo de exploração, as vítimas são obrigadas a realizar trabalhos domésticos em condições desumanas e degradantes (ex.: empregadas internas que não têm direito a períodos de descanso, acesso a cuidados de saúde ou sequer a condições mínimas de alojamento e privacidade);

•Setor têxtil, construção civil e agricultura: grande parte das situações de tráfico para exploração laboral identificadas em Portugal e noutros países estavam ligadas a atividades desenvolvidas nestes três setores. A elevada ocorrência de situações de tráfico nestas áreas pode estar ligada ao facto de que estes setores empregam sobretudo trabalhadores sazonais e mão-de-obra imigrante. Os períodos de grande actividade de agricultura ou de construção de grandes infraestruturas (ex: estádios de futebol para uma grande competição internacional) representam para os traficantes mercados atrativos para colocarem as suas vítimas, sendo o processo facilitado pelo interesse de algumas empresas em obter rapidamente muitos trabalhadores para a prestação de um serviço de curta duração;

•Desporto: muitos jovens são traficados com a promessa de integrarem um famoso clube ou equipa desportiva e quando chegam ao local de destino são obrigados a exercer uma atividade sem receber nenhuma remuneração e em condições degradantes, tendo os seus direitos fundamentais violados.

Em regra, a forma de recrutamento mais utilizada para angariar as vítimas neste contexto é o uso de propostas de trabalho aliciantes, que levam as pessoas a concordar e eventualmente consentir e colaborar com o processo do tráfico (por exemplo, facilitando a falsificação de documentos de identificação e viagem e/ou deslocando-se sozinhas até ao local de destino). Frequentemente, só no momento em que se inicia a exploração é que a vítima percebe que foi enganada, sentindo-se muitas vezes obrigada a permanecer na situação de exploração pela culpa que sente em ter inicialmente consentido.

Indicadores do tráfico para exploração laboral
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) identifica 6 indicadores genéricos de tráfico para exploração laboral. Cada indicador deve estar relacionado com um conjunto de questões mais específicas de acordo com o seguinte:

1. Violência física, incluindo a violência sexual:

• O trabalhador apresenta qualquer sinal de maus tratos físicos, designadamente contusões?
• O trabalhador revela sinais de ansiedade ou medo?
• Existe mais algum sinal de confusão mental ou indícios de violência?
• Os supervisores/empregadores demonstram um comportamento violento?

2. Restrição da liberdade de movimentos:

• O trabalhador está fechado no seu local de trabalho?
• O trabalhador é forçado a dormir no local de trabalho?
• Existem sinais visíveis que indiquem que o trabalhador não é livre de sair do seu local de trabalho, por exemplo devido à existência de arame farpado ou à presença de guardas armados ou outros constrangimentos?

3. Ameaças

• O trabalhador faz afirmações incoerentes e/ou demonstra uma eventual “lavagem cerebral” feita pelo empregador?
• O trabalhador refere qualquer tipo de ameaça contra si, contra os seus colegas ou contra os membros da sua família?
• Existe algum sinal de que o trabalhador esteja a ser sujeito a extorsão ou chantagem (com ou sem a cumplicidade do empregador)?
• O trabalhador demonstra um comportamento ansioso?
• O trabalhador é forçado a trabalhar horas extra excessivas (não pagas) ou a desempenhar tarefas que preferia não ter de realizar e é ameaçado caso se recuse a executá-las?
• O trabalhador numa situação irregular (trabalhadores migrantes) é ameaçado de denúncia às autoridades?

4. Dívidas ou outras formas de subjugação

• O trabalhador tem de reembolsar a entidade patronal quaisquer taxas de recrutamento ou transporte? Em caso afirmativo, estas são deduzidas do seu salário?
• O trabalhador é forçado a pagar taxas excessivas de alojamento, alimentação ou ferramentas, que sejam directamente deduzidas do seu salário?
• Foi pago qualquer financiamento ou adiantamento que tenha impossibilitado o trabalhador de deixar o seu empregador?
• As licenças de trabalho estão associadas a um trabalhador específico? Houve anteriormente alguma reclamação relativa a este empregador?

5. Retenção de salários ou não pagamento de salários

• O trabalhador tem um contrato regular de trabalho? Em caso negativo, de que modo lhe são pagos os salários?
• É-lhe feita alguma dedução ilegal?
• O trabalhador recebeu algum salário?
• Qual o montante do salário em relação aos requisitos estatutários nacionais?
• O trabalhador tem acesso aos rendimentos do seu trabalho?
• O trabalhador foi enganados quanto ao montante dos seus salários?
• Os salários são pagos regularmente?
• O trabalhador é pago em espécie?

6. Retenção dos documentos de identificação

• Os documentos de identificação do trabalhador estão na sua posse?
• Se assim não for, foram guardados pelo empregador ou pelo supervisor? Porquê?
• O trabalhador tem acesso aos seus documentos em qualquer altura?
Se identifica um ou mais destes indicadores na sua situação laboral ou na de alguém que conheça, contacte a APAV (www.apav.pt) para obter informações e apoio de forma a abandonar ou denunciar uma situação de tráfico para exploração laboral.

Outras formas de tráfico

Outras formas de tráfico
Conforme mencionado anteriormente, as formas de exploração no tráfico de seres humanos são variadas, tendo como característica comum o facto de a vítima ser obrigada a realizar uma atividade contra a sua vontade, por meio de ameaças ou outras formas de coação, tendo a sua liberdade de movimentos condicionada.
O objetivo principal de todas as formas de exploração é gerar aproveitamento económico, seja porque a vítima desempenha um trabalho sem remuneração, gerando lucro aos exploradores (no caso da exploração laboral), seja porque é a própria vítima quem obtém dinheiro e outros bens materiais para os exploradores (no caso da exploração da prostituição e da mendicidade).

De acordo com o atual Código Penal, as formas de exploração compreendidas no âmbito do tráfico de seres humanos são:

· Exploração Sexual: qualquer abuso da vulnerabilidade de outra pessoa, mediante abuso de poder ou de confiança, para fins sexuais, incluindo, mas não exclusivamente, a obtenção de benefícios financeiros (ver Sessão 3);

· Exploração do Trabalho: este tipo de exploração pode ser definido como “todo o trabalho ou serviço que é exigido a qualquer indivíduo sob ameaça de qualquer castigo e para o qual o referido indivíduo não se tenha oferecido de livre vontade” (artigo 2º da Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Ver Sessão 4).

· Mendicidade: A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define a mendicidade como “um conjunto de atividades através das quais um indivíduo pede dinheiro a um estranho em razão de ser pobre ou de necessitar de doações de caridade para a sua saúde ou por razões religiosas. Os mendigos podem também vender pequenos artigos, como espanadores ou flores, em troca de valores que podem não ter relação alguma com o valor dos itens a venda”. A mendicidade forçada ocorrerá sempre que alguém estiver a ser forçado, mediante qualquer meio de coação ou de violência, a praticar a mendicidade, que neste caso deverá ser entendida como uma forma de trabalho ou serviços forçados.

· Escravidão: a escravidão é configurada pela conduta de quem reduz outra pessoa ao estado ou à condição de escravo, ou aliena, cede, adquire pessoa ou dela se apossa com a intenção de a manter na condição de escravo. A escravidão é também é um crime previsto no Código Penal (artigo nº 159), e foi incluída enquanto forma de exploração no âmbito do tráfico de seres humanos para poder possibilitar a criminalização de condutas como o transporte e o aliciamento de pessoas com a finalidade de reduzi-la à condição de escravo.

· Extração de Órgãos: o tráfico de seres humanos também pode ter como finalidade a retirada dos órgãos da vítima para a venda clandestina.

· Exploração de Atividades Criminosas: através desta forma de exploração, as vítimas são obrigadas, através de ameaças ou outras formas de coação, a praticar pequenos crimes (como furtos de carteira) ou crimes mais graves (como tráfico de drogas) em benefício dos exploradores, que lucram com as atividades praticadas (ficam com os bens furtados ou com o dinheiro fruto do tráfico de drogas);

· Adoção: a adoção pode ser uma das finalidades do tráfico de crianças e jovens, e consiste no aliciamento e transporte das vítimas com o fim de submetê-las a processos de adoção ilegal, seja no próprio país ou num país diferente daquele em que nasceram e vivam com a família de origem;

· Outras formas de exploração: a atual redação do Código Penal contém uma definição mais aberta do tráfico de seres humanos, admitindo outras formas de exploração para além daquelas expressamente mencionadas, possibilitando o enquadramento de situações diversas.

Uma das principais características do tráfico de seres humanos e que inclusive está incorporada no seu conceito é o facto de aproveitar sempre uma característica de vulnerabilidade da vítima. O conceito de “vulnerabilidade” pode variar na legislação de diferentes países, mas é possível dizer que tal característica em regra está ligada ao ambiente onde as potenciais vítimas vivem e também a fatores pessoais que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa ou de um grupo de pessoas para virem a tornar-se vítimas de tráfico.
A título de exemplo, podemos pensar numa situação em que os recrutadores fazem à futura vítima uma falsa proposta de trabalho, aproveitando-se da sua situação de vulnerabilidade enquanto mulher que vive num país com altos índices de pobreza, duramente afetado pela desigualdade de género, o que a impede de ter pleno acesso ao mercado de trabalho. Face à sua situação concreta, a potencial vítima aceita a proposta, acreditando na perspetiva de exercer uma atividade profissional de forma justa e equitativa, acabando por ser facilmente conduzida a uma situação de exploração.

As estatística referentes a Portugal demonstram que a forma de recrutamento mais utilizada para a prática do tráfico de seres humanos é a falsa proposta de trabalho, tendo especialmente em conta a atual situação económica que o país enfrenta e os altos índices de desemprego registados 4.
Quanto às formas de coação e de controlo, as situações conhecidas em Portugal revelam que as formas mais frequentes de controlar as vítimas de tráfico de seres humanos e impedir que deixem a situação de exploração são as ameaças, direcionadas tanto à vítima como aos seus familiares e amigos, e também o controlo de movimentos.

Projeto Briseida

Conheça o Projeto

O Projeto Briseida é um projeto europeu desenvolvido pela APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, co-financiado pela Comissão Europeia e que conta com os seguintes parceiros:
Parceiros Nacionais: Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT); Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF); Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP); Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH)

Parceiros Transnacionais: Crime Victim Compensation and Support Authority (Suécia); Soros Foundation (Roménia); The Tavistock Institute of Human Relations (Reino Unido), La Strada International (Holanda)

Os objetivos principais do Projeto Briseida são promover a sensibilização de empregadores, sectores considerados de (alto) risco para a ocorrência de tráfico de seres humanos (construção civil, agricultura e outros) e o público em geral para o fenómeno do tráfico de seres humanos para fins de exploração laboral.

Para a prossecução do objetivo central do projeto estão planeadas diversas atividades como: o desenvolvimento de uma campanha de sensibilização pública; o desenvolvimento de acções formação sobre tráfico de seres humanos para fins de exploração laboral, em cada um dos países parceiros (Portugal, Suécia, Roménia, Reino Unido), destinada a profissionais que poderão vir a contatar com estas vítimas – profissionais de saúde, técnicos de apoio à vítima, polícias. Estão igualmente previstas reuniões de sensibilização com profissionais dos sectores de risco, bem como a elaboração de um manual de procedimentos. Com este manual pretende-se desenvolver um conjunto de procedimentos que permitam uma melhor abordagem do tráfico de seres humanos para fins de exploração laboral por parte dos representantes dos referidos sectores.

Esta página do Projeto Briseida pretende promover a sensibilização de diferentes grupos sobre o tráfico de seres humanos, para que consigam reconhecer situações relacionadas a este crime e evitar situações de risco.

Os conteúdos deste site foram desenvolvidos com o apoio financeiro do Programa Prevenir e Combater a Criminalidade da Comissão Europeia – DG Assuntos Internos. Os conteúdos refletem os pontos de vista dos autores, não podendo a Comissão Europeia ser responsabilizada por qualquer utilização que possa ser feita da informação aqui contida.

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